Vanessa é natural de Guaratinguetá e mudou-se para São Paulo após a conclusão do curso de Engenharia Química. Atualmente ocupando a posição de Gerente Sênior de Supply Chain na BASF, Vanessa nos conta que um dos principais fatores de incentivo para chegar aonde chegou é a sua família, que possui um papel relevante em sua jornada, uma âncora positiva nos dias de hoje. Além disso, ela valoriza amizades de longa data e conta que quando não está trabalhando ama conversar. Aprecia cultura, teatro, livros e bons filmes.
Nessa entrevista iremos conhecer as experiências da Vanessa no mercado e acompanhar brevemente os relatos de como é ser uma mulher em áreas com predominância masculina.
NEO:
Por que você escolheu sua formação em sistemas da informação?
Vanessa Gonçalves:
“Sempre tive a lógica, a estruturação e o racional como afinidades. Então, desde os meus tempos de colégio minha inclinação para exatas era visível, porque eu gostava muito de Matemática, Física e Química.”
NEO:
O número de mulheres em Engenharia vem crescendo ao longo do tempo. Quando você fez o curso ainda existia uma desigualdade de gênero?
Vanessa Gonçalves:
“Eu tinha duas áreas de interesse, prestei Engenharia Mecânica e Engenharia Química e acabei optando por Engenharia Química porque era um curso que já tinha um equilíbrio maior de gênero. A possibilidade de atuação de uma engenheira química era mais ampla, pensando em posições de mercado, do que uma engenheira mecânica naquele momento. E, claro, eu já tinha a consciência de que ser mulher em um cargo de engenharia não seria uma jornada fácil.”
NEO:
Você sente que o fato de ser mulher gerou algum obstáculo na sua carreira e nos ambientes vivenciados por você? Sente que precisou se provar mais?
Vanessa Gonçalves:
“Tendo eu já trabalhado com logística, planejamento de transporte, armazenagem e depois ocupado posições em manufatura, logo se vê que esses não são dos ambientes mais favoráveis para mulheres. Mas eu tive que aprender a lidar com ser a minoria, e, sendo uma mulher negra é óbvio que isso ganha outras dimensões. Em manufatura por exemplo, eu tinha duas colegas com papel um pouco mais administrativo e em minha posição havia dois homens e mais 160 operadores.
Essa discussão das experiências negativas da mulher no mercado é muito sutil. Todo mundo tem essa expectativa de que alguém vai estar em uma sala de reunião e falar: -“Não quero trabalhar com você porque você é mulher”. Não é assim que acontece: as micro agressões e os questionamentos vem muito mais de uma forma consistente do que declarada. Felizmente eu nunca enfrentei um assédio declarado, mas houve um tempo dentro da liderança de manufatura em que a operação frequentemente fazia mais questionamentos que o normal, e eu entendia que isso era pelo fato de não estarem recebendo a orientação e o processo de uma liderança masculina, e que se fosse um homem no meu lugar com certeza esse número de questionamentos seria mais reduzido. Mas, mesmo vivendo esse cenário, eu sempre tive essa dimensão muito clara, de que o mundo seria mais exigente para me reconhecer como um modelo de sucesso do que seria para um homem branco ou uma mulher branca. Essa consciência permitiu que eu trabalhasse com menos surpresa, sabendo que isso já estava dentro do que eu esperava. Mas de qualquer forma eu não fui e nem serei parada por esse tipo de questionamento, e a minha voz será ouvida.”
NEO:
Uma sensação comum entre mulheres na sociedade é a chamada Síndrome da Impostora, o sentimento de que serão descobertas como uma fraude a qualquer momento quando estão obtendo sucesso, ao invés de ficarem confortáveis e orgulhosas de suas conquistas. Você enxerga isso nas mulheres ao seu redor? Você mesma já sentiu isso em algum momento?
Vanessa Gonçalves:
“Na maioria das vezes, nós mulheres temos uma tendência maior a autocobrança. Quando pensamos em mudança de posição e desenvolvimento de carreira, a mulher sempre espera estar 120% pronta para assumir qualquer frente, enquanto os homens estando 80% prontos já se sentem preparados para abraçar o próximo desafio. E isso é algo que ainda trabalho para desenvolver em mim, porque se eu acredito que estou quase pronta, isso significa que eu realmente já estou preparada para um novo desafio. Exatamente o oposto de como eu conduzia minha carreira anteriormente, em que eu precisava estar me sentindo 100% preparada para avançar mais um passo.
Hoje eu trabalho em uma multinacional alemã e tenho uma equipe de 26 pessoas em que 4 mulheres respondem direto para mim. E essa é a discussão mais recorrente quando a gente fala de performance e de desenvolvimento de carreira. São mulheres brilhantes, cada uma com suas características e cada uma com o seu perfil. O meu trabalho como líder é mostrar para elas que estão prontas e questionar o que elas precisam para acreditar nisso, seja avançando para um próximo passo ou saindo da zona de conforto e enxergando que podem assumir uma nova posição.”
NEO:
Por muito tempo, características consideradas femininas eram vistas como fraqueza no mercado de trabalho. Muitas mulheres, para se encaixarem, acabam achando que precisam se masculinizar para serem ouvidas e levadas em consideração no trabalho. Você enxerga isso nas mulheres ao seu redor? Você mesma já sentiu isso?
Vanessa Gonçalves:
“Quanto mais fiéis formos à nossa essência, melhor exerceremos o nosso trabalho e mais vantajoso será para todo o processo. Recentemente eu participei de um workshop, em que um dos exercícios era se imaginar no fim do ano, refletindo sobre 2022 e o que vinha à mente quando se tratava de resultados, conquistas e sentimentos. As pessoas começaram a falar de temas mais concretos, focados em metas de trabalho e resultados, e eu não queria falar disso, a minha conquista e a minha reflexão sobre 2022 estava muito mais ligada ao sentimento vivido após 02 anos de pandemia, de como todo mundo estava se sentindo em termos de saúde mental, quis trazer os meus pontos mais voltados para essa visão. Há 10 anos eu teria mantido o script e me dado ao trabalho de não ser eu, e respondido como a maioria, só para me encaixar. Mas, hoje eu faço questão de falar que além da Vanessa ser uma profissional experiente de Supply Chain, existe uma Vanessa com muitas dores invisíveis que afetam as minhas entregas iminentes. Esse é um momento de coragem que precisamos ter e brigar para ir além do roteiro. É muito mais fácil ser a líder irreal e não fiel a você mesma e assim ninguém conseguir te atingir, mas eu prefiro me arriscar sendo fiel a mim, mesmo que isso signifique estar fora do padrão esperado.”
NEO:
Quanto mais mulheres vemos em posições de liderança, mais sentimos que ali é o nosso lugar, e que pertencemos a este ambiente. Como podemos aumentar a representatividade no ecossistema empresarial de forma sustentável?
Vanessa Gonçalves:
“Isso é um ponto muito sério. Eu nunca tive uma liderança negra, homem ou mulher, e falo isso com um misto de tristeza e de choque. Hoje respondo para duas vice-presidências e sei que dificilmente vou encontrar uma multinacional com um vice ou uma vice-presidente negro circulando. É muito complicada a falta de representatividade. O fato de que a gente se vê no próximo facilita demais esse processo. E hoje vejo como sou, de uma forma muito honrada, referência para tantas meninas e tantos meninos. Atualmente, dentro da companhia temos um programa de mentoria e é impressionante como tantas profissionais jovens chegam para mim e dizem: “eu vim para essa área porque aqui tinha você, aqui sei que a oportunidade existiu pra você, então ela pode existir pra mim também.” Por isso faço esse papel de advogar em nome do tema de equidade de gênero e equidade de raça, porque entendo o quanto a gente precisa de representatividade dentro do mundo corporativo. Lembro-me de um evento voltado para a alta liderança da empresa e estavam presentes ali cerca de 200 pessoas. Dentro desse número me deparei com um mar de homens de terno cinza. Não consigo não lembrar dessa cena e falar “está errado isso aqui”. Mulheres, engenheiras, administradoras, economistas estão presentes em todas as organizações. Quando participo de um evento que é específico para a alta liderança, olho e penso: onde nós estamos? Onde se encontram as mulheres? É por isso que brigo muito por essa pauta e faço questão de ser uma voz ativa, porque nós não temos noção do impacto que geramos na vida de outras pessoas. Há gente que vem até mim dizendo “nossa queria tanto já ter falado com você antes”, parece até que você é uma superestrela, e você é só uma líder negra, mas essa imagem é tão poderosa que precisamos fazer o bom uso disso dentro das organizações.”
NEO:
Qual sua visão sobre as ações de diversidade e inclusão das empresas? Acha que estamos no caminho certo? O que falta?
Vanessa Gonçalves:
“A primeira coisa que precisamos entender é que se continuarmos fazendo as mesmas coisas que fazemos hoje, não vamos conseguir essa mudança. Precisamos falar de construção de base e de acesso. Temos que repensar os nossos modelos para saber se vamos ter um resultado diferente. As empresas têm um papel de ativamente se questionar do “por que tenho essa composição de equipe?”
Uma das coisas que mais me dói é ainda ouvir que se uma mulher foi promovida foi por causa do marcador de diversidade. Recentemente um homem me disse que atualmente as organizações só estão priorizando mulheres e pessoas com marcadores de diversidade, e que por isso está ficando cada vez mais difícil para os homens crescerem nas organizações. Minha resposta para ele foi a seguinte: “Não será mais difícil para você, mas será tão difícil quanto sempre foi para qualquer mulher.” No fim da história, para ele nós mulheres estamos ocupando o espaço dele, e estamos mesmo, pois temos capacidade e temos potencial. E isso ainda não é o suficiente, podemos fazer muito mais, questionando a base, questionando quem colocamos em nossas equipes e sufocando cada vez mais essas pessoas que não entendem que diversidade, equidade de gênero, raça e pessoas com deficiência não é uma agenda de marketing corporativo, é uma realidade e todo mundo precisa de representatividade. Então a alta liderança não será mais composta apenas de homens brancos caucasianos. Esse tempo acabou.”
20 maio 2022